A MENTE QUE SE ABRE A UMA NOVA IDEIA JAMAIS VOLTARÁ AO SEU TAMANHO ORIGINAL.
Albert Einstein

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

:: CENTRÍPETA OU CENTRÍFUGA? :::

Postado por : prof. Dulcidio Braz Júnior

Luis Acosta/AFP em UOL Esporte
Ana Claudia Lemos, ouro nos 200m rasos

Estava tomando meu café da manhã dominical e vendo momentos importantes do Pan desta semana reprisados na TV Record que cobre este evento esportivo internacional com exclusividade.
Soube, durante a semana, que a brasileira Ana Claudia Lemos levou ouro no atletismo na prova dos 200m rasos. Mas não tinha visto a prova na TV, só fotos e textos na internet.
Chamou-me a atenção a narração do Maurício Torres quando, pouco antes da linha de chegada, uma atleta jamaicana emparelha com Ana Claudia, na raia adjacente, tentando roubar a sua primeira posição.  Maurício comenta a indiscutível garra da brasileira, que lutou muito para evitar a perda de posição, e chama a atenção para o momento do duelo corpo a corpo, bem na curva da pista de atletismo, dizendo algo mais ou menos assim "... bem quando a força centrífuga atuava ...".
Segundo Maurício Torres, a atleta, ao fazer a curva, sofre uma força centrífuga, ou seja, é "puxada radialmente para fora da sua trajetória", como na figura abaixo que mostra uma visão superior da atleta correndo em uma das raias.


Infelizmente, há na frase do locutor uma interpretação física errada e bastante comum pois, na Mecânica Clássica, não existe força centrífuga e sim força centrípeta(1). A atleta, ao fazer a curva, deve sofrer uma força centrípeta, dirigida para o centro da trajetória, força esta que a impede de "passar reto" na curva e perder o traçado. A próxima figura ilustra a ideia física correta.


A força centrífuga até aparece em alguns textos de Mecânica. Mas não é uma força, no sentido verdadeiro do termo. A força centrífuga faz parte de uma família de "forças fictícias", que nada mais são do que entes matemáticos que aparecem nas equações do movimento para certos referenciais, que até funcionam (ou se comportam) como forças. Mas deve ficar claro que, embora pareçam, não são forças de fato!

Antes de mais nada, para ser força, deve haver uma interação, ou seja, uma ação entre dois corpos. Note que devem existir dois corpos, um que FAZ a força e outro que a RECEBE(2). Partindo desta definição do que é força pergunto: quem (ou que corpo) estaria puxando o corpo da atleta para fora da curva? Você pode passar o resto da sua vida investigando e não vai encontrar outro corpo capaz de interagir com o corpo da atleta puxando-a radialmente para fora da curva. Aliás, quem faz a suposta força centrífuga está mais para um fantasma do que para um ente físico! Logo, do ponto de vista do modelo bem-sucedido previsto pela Mecânica Newtoniana, não há força radial para fora da curva, ou seja, não há força centrífuga!

Mas é fácil imaginar que o atrito trocado entre a sola do tênis da atleta e o piso sobre o qual ela corre tem um componente radial que puxa a atleta para o centro da curva, ajudando-a a manter o traçado curvo. Logo, o que existe na verdade é o contrário da força centrífuga, é a força centrípeta!

Raciocine comigo e veja se discorda: quando a atleta faz a curva, correndo bastante, ela tem uma tendência de sair da curva pela tangente, perder o traçado da raia em que corre, e não sair lateralmente, ou seja, pela direção radial. Concorda? Para ela, a atleta, é "como se" estivesse sendo puxada para fora da curva. Ela "sente" isso no próprio corpo. Mas é uma ilusão mecânica. Na verdade, o que a atleta sente é um efeito da Inércia, da tendência que o seu corpo dotado de massa e velocidade tem de permanencer em movimento retilíneo e uniforme. Esta imporante ideia física eu explico em detalhes aqui neste post. Para não ser repetitivo aqui, sugiro que você dê uma olhada neste texto, especialmente se não domina o assunto e, portanto, também corre o risco de cometer erro físico bastante comum e que, só para lembrar outro exemplo, nas transmissões de Fórmula 1 é figurinha fácil e, em vez de força centrífuga, recebe o nome de "força G" (veja neste post meus comentários sobre a "força G", outra força fictícia, ou seja, outra força não é força!).

:: Outro "furo" do Maurício
Confira neste post outro errinho físico do locutor Maurício Torres (foto) que peguei quando ele narrava um jogo de Curling durante os Jogos Olímpicos de Inverno 2010 cobertos pela TV Record em fevereiro do ano passado.
Antes de tudo, que fique bem claro que não estou querendo pegar no pé do Maurício ou de qualquer outro locutor esportivo. Mas estes erros chamam muito a minha atenção já que, como físico, professor, e autor de material didático, fui treinado por mais de duas décadas para enxergar a Física contextualizada e não deixar passar nenhum furo físico em textos escritos ou falados.  E, infelizmente, não é nada raro locutores esportivos cometerem erros de Física durante as suas narrações.
Isso é tão comum e chama a atenção dos físicos e professores da disciplina que já foi tema de muitos artigos e posts. Destaco um deles: A Física nas Transmissões Esportivas: Uma Mecânica de Equívocos, de Alexandre Medeiros, que saiu publicado na edição de maio de 2004 da Revista 'A Física na Escola' editada pela SBF - Sociedade Brasileira de Física. Coincidentemente, citei (e recomendei) esta mesma revista no post anterior quando indiquei a leitura de um artigo de uma colega de curso no CERN.

:: Aviso aos Trolls de Plantão
Como já disse e repito, não estou querendo pegar no pé de ninguém. Tá?
Também não estou zoando os locutores. Este post (e outros) não têm a intenção de desqualificar os profissionais que narram os esportes. Quero apenas chamar a atenção para o fato de que, como a maioria das pessoas, em outras tantas áreas profissionais, eles (locutores) também têm formação cientítica muito ruim. Como sou professor/educador, isso me chateia porque é uma prova viva da má qualidade do ensino no nosso país.
E há um agravante importante nesta situação: estes profissionais têm o poder da mídia nas mãos e, portanto, atingem muitas pessoas, especialmente os jovens estudantes em fase de formação escolar, período de construção de modelos científicos acerca do mundo que os rodeia. Sem querer, estes profissionais acabam propagando muitos erros clássicos, a maioria deles ancoradas em modelos aristotélicos, ou seja, concepções erradas acerca do Universo e que vêm de antes de Cristo!  Estamos falando de erros milenares mas que, a partir de Isaac Newton (1643-1727), foram muito bem resolvidos, em situações físicas muito bem descritas, em modelos bastante funcionais e que podem ser reporduzidos de forma universal. A pergunta que está sempre no ar é: para que insistir em erros de mais de 2 milênios se já faz pelo menos 3,5 séculos qued temos bons modelos para descrever estas situações físicas insistentemente mal interpretadas?
Eu gostaria muito que os locutores esportivos pensassem seriamente sobre isso. Que estudassem um pouco de Física, nada além da Mecânica Clássica do primeiro ano do ensino médio e que já deixaram para trás há muito tempo uma vez que são profissionais de nível superior. Não custaria nada esse capricho, custaria? Seria um carinho a mais em suas transmissões. E uma contundente prova de respeito com o telespectador e, certamente, uma inestimável contribuição para com a educação no nosso país que está na UTI e pede socorro não é de hoje!

(1) A rigor, o correto nem é dizer força centrípeta e sim resultante centrípeta. Isso porque ao vetor força que puxa os corpos que fazem curva para o centro da curva com a intenção de manter o traçado não retilíneo pode não ser uma única força mas a soma de várias outras forças que juntas dão uma resultante centrípeta.
(2) A Terceira Lei de Newton, também conhecida com Lei da Ação e Reação, prevê que o corpo que faz força (AÇÃO) recebe de volta outra força (REAÇÃO) de mesma intensidade, na mesma direção, mas em sentido oposto, E, no final das contas, é essa "troca de forças" que caracteriza a interação, a ação entre corpos. Clique aqui para ler post onde explico a Terceira Lei de Newton e dou exemplos de sua aplicação.

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